... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...


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Em associação com Casa Pyndahýba Editora

Ano I Número 4 - Abril 2009

Conto - Sílvio Fiorani

Rosas de Coleridge

Sonhei que acordara com o ruído da porta que se abria lentamente, e eu estava entre os lençóis, reclinado sobre travesseiros sobrepostos, como costumam ficar os convalescentes. Vi, de soslaio, que era Luísa, minha mãe, quem entrava, vinda de alguma dimensão desconhecida de sua existência [isto, num tempo (o da vigília e o do sono) em que ali, em nossa velha casa, não havia mais ninguém, pois ela morrera, e também meu pai; partíramos todos: uns, para a viagem eterna; outros para a verdadeira vida a que estamos destinados]. Luísa viera, pois, invadir o meu sono, enquanto eu ainda convalescia de uma moléstia não diagnosticada. E no sonho fingi que continuava a dormir, para que ela não interrompesse o caminho até minha cama. Aproximando-se, ela colocou-me algo entre as mãos postas sobre o peito, e eu só abri os olhos com o ruído da porta que se fechava; abri os olhos, e vi afinal a rosa branca que eu resolutamente segurava; e ali, ainda reclinado, recobrei a memória de sua morte, levantei-me e corri para ver se a via ainda uma vez, e acordei, e ao brusco movimento a rosa esfacelou-se, e era real por si mesma, embora desfeita, tão real quanto o fato inapelável de que minha mãe morrera. Eu jamais a veria outra vez. Então, saí para o corredor e me dirigi ao quarto de Fabrício, meu irmão. Encontrei-o sentado junto à escrivaninha, lendo algo. Ela esteve a aqui, eu lhe disse, e ele, nada respondendo de pronto, virou-se para mim e ergueu no ar o papel que eu imaginei que estivera a ler. Apareceu-me também, ele disse, afinal. Deixou-me isto e partiu. Era uma folha em branco; o que lhe parecera altamente significativo, dado o ar de gravidade com que me olhava. Era um papel de carta, com sua marca d´água plenamente reconhecível. Senti naquele momento um intenso calafrio, acordei ou imaginei que tivesse acordado. Eu estava de fato reclinado sobre travesseiros sobrepostos. Não havia nada mais sensato a fazer, eu pensei, que ir até o quarto de meu irmão e contar-lhe o que acontecera.

Fabrício estava sentado junto à escrivaninha, anotando algo sobre um bloco de papel. Relatei-lhe o que ocorrera, e o que para mim era mistério e prodígio, a ele pareceu apenas a manifestação do acaso, embora eu ainda tivesse a haste da rosa branca entre as mãos. Elevando a voz ao seu melhor registro (assim lhe deve ter parecido) proclamou a impossibilidade de se crer naquele impasse como coisa real por dentro. Nada se cria, tudo se transforma, ironizou. Nos anos de colégio, ele havia sido imbatível em física e matemática, como os céticos renitentes costumam ser na adolescência. Atirei-lhe as minhas considerações sobre universos paralelos, o mundo pleno de possibilidades para além dos cinco sentidos, o que lhe causou uma certa fúria, própria de seu temperamento intempestivo, e o fez golpear com a palma da mão a escrivaninha. O ruído (real ou irreal, que importa?) afinal me despertou, e eu estava em um outro quarto, outra casa, outra cidade outro tempo?, com a persiana a filtrar a luz de uma manhã estiva e plenamente real. Dias depois, recebi de meu irmão uma carta inusitada, em que começava por dizer que havia sonhado com Luísa. Ele estava em seu quarto, junto à escrivaninha, revisando um relatório de empresa a ser entregue no dia seguinte. Sem nada dizer, com o ar sereno e complacente de sempre, ela entregou-lhe uma folha de papel em branco, e partiu.

SP 19.02.2007